Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo – Ano C

 

Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo

 

No centro da Solenidade deste domingo está a celebração de Deus que alimenta o seu povo e que, no seu Filho, dá-lhe o alimento supremo e eterno, a grande Eucaristia dos crentes.

Para exprimir esta oração de louvor e de agradecimento, que dirigimos ao Senhor acolhendo o dom do seu amor, a Escritura emprega duas palavras: a bênção (primeira leitura) e a ação de graças (segunda leitura).

Estas duas dimensões de oração estão intimamente ligadas e devem habitar a nossa vida para além da missa, para testemunhar todo o amor com o qual Cristo ama os homens (Evangelho).

 

LEITURA I

Gen 14, 18-20

Leitura do Livro do Génesis

Naqueles dias,
Melquisedec, rei de Salém, trouxe pão e vinho.
Era sacerdote do Deus Altíssimo
e abençoou Abraão, dizendo:
«Abençoado seja Abraão pelo Deus Altíssimo,
criador do céu e da terra.
Bendito seja o Deus Altíssimo,
que entregou nas tuas mãos os teus inimigos».
E Abraão deu-lhe a dízima de tudo.
 
 
 
 
 
 
 

 

Breve comentário à primeira leitura.

Na história do povo de Deus, o rei Melquisedec só intervém uma vez, no seu encontro com Abraão. Mas este episódio teve uma importância decisiva para a ação de Jesus.

O Antigo testamento está cheio de sacrifícios sangrentos. Mas eis aqui um sacrifício sem qualquer efusão de sangue. Melquisedec, um rei sacerdote, oferece diante de Abraão pão e vinho. Os cristãos reconheceram nesse gesto um anúncio da Eucaristia e muitas vezes representaram este sacrifício nas pinturas e vitrais das igrejas, na proximidade do altar. Reconhecemos também neste episódio antigo um traço da pedagogia divina, que provocou continuamente o seu Povo a purificar as suas práticas sacrificiais, para prepará-lo para acolher a ação definitiva do seu Filho.

 

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 109 (110)

Refrão 1: O Senhor é sacerdote para sempre.

Disse o Senhor ao meu Senhor:
«Senta-te à minha direita,
até que Eu faça de teus inimigos escabelo de teus pés».
 
O Senhor estenderá de Sião
o cetro do teu poder
e tu dominarás no meio dos teus inimigos.
 
A ti pertence a realeza desde o dia em que nasceste
nos esplendores da santidade,
antes da aurora, como orvalho, Eu te gerei».
 
O Senhor jurou e não Se arrependerá:
«Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedec».
 
 

LEITURA II

1 Cor 11, 23-26

Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios

Irmãos:
Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti:
o Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue,
tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse:
«Isto é o meu Corpo, entregue por vós.
Fazei isto em memória de Mim».
Do mesmo modo, no fim da ceia, tomou o cálice e disse:
«Este cálice á a nova aliança no meu Sangue.
Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de Mim».
Na verdade, todas as vezes que comerdes deste pão
e beberdes deste cálice,
anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha».
 
  

Breve comentário à segunda leitura.

As dificuldades surgidas na primeira comunidade de Corinto tinham incitado o apóstolo Paulo a recordar por escrito o que comporta a celebração do grande mistério da fé, a Eucaristia.

Nesta narração da instituição da Eucaristia, Paulo põe na boca de Jesus uma dupla «ordem de reiteração». Depois da fração do pão, e mesmo antes de lhes dar o cálice, Jesus diz aos Apóstolos: «Fazei isto em memória de Mim». Palavra explícita, fundadora da nossa prática eucarística. E Jesus explica todo o alcance deste memorial, tal como o canta a anamnese: proclamar o que Jesus fez por nós (dom da sua vida), celebrar a sua Ressurreição que nos salva, esperar a sua vinda na glória.

O que os Apóstolos nos dizem da Eucaristia está nestas breves linhas de uma carta de São Paulo.

Que diferenças entre as primeiras celebrações e as nossas, atualmente. Paulo dá-nos indicações importantes: refere-se, em primeiro lugar, à tradição que ele mesmo recebeu, e esta tradição vem do próprio Senhor, que deu a ordem de «refazer isso em memória dele»; indica, em seguida, que esta celebração recebida da tradição está integrada numa refeição, como a fração do pão na última Ceia e as refeições do Ressuscitado com os seus discípulos, em Emaús e em Jerusalém. Esta refeição coloca-nos em situação de esperança, sempre na espera do regresso do nosso Mestre Jesus Cristo, nosso Deus e Senhor.

 

SEQUÊNCIA

Terra, exulta de alegria,
Louva o teu pastor e guia,
Com teus hinos, tua voz.
 
Quanto possas tanto ouses,
Em louvá-l’O não repouses:
Sempre excede o teu louvor.
 
Hoje a Igreja te convida:
O pão vivo que dá vida
Vem com ela celebrar.
 
Este pão – que o mundo creia –
Por Jesus na santa Ceia
Foi entregue aos que escolheu.
 
Eis o pão que os Anjos comem
Transformado em pão do homem;
Só os filhos o consomem:
Não será lançado aos cães.
 
Em sinais prefigurado,
Por Abraão imolado,
No cordeiro aos pais foi dado,
No deserto foi maná.
 
Bom pastor, pão da verdade,
Tende de nós piedade,
Conservai-nos na unidade,
Extingui nossa orfandade
E conduzi-nos ao Pai.
 
Aos mortais dando comida,
Dais também o pão da vida:
Que a família assim nutrida
Seja um dia reunida
Aos convivas lá do Céu.
 
 

ALELUIA 

Jo 6,51

Aleluia. Aleluia.

Eu sou o pão vivo descido do Céu, diz o Senhor.
Quem comer deste pão viverá eternamente.
 
 

EVANGELHO

Lc 9, 11b-17

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
estava Jesus a falar à multidão sobre o reino de Deus
e a curar aqueles que necessitavam.
O dia começava a declinar.
Então os Doze aproximaram-se e disseram-Lhe:
«Manda embora a multidão
para ir procurar pousada e alimento
às aldeias e casais mais próximos,
pois aqui estamos num local deserto».
Disse-lhes Jesus:
«Dai-lhes vós de comer».
Mas eles responderam:
«Não temos senão cinco pães e dois peixes…
Só se formos nós mesmos
comprar comida para todo este povo».
Eram de facto uns cinco mil homens.
Disse Jesus aos discípulos:
«Mandai-os sentar por grupos de cinquenta».
Assim fizeram e todos se sentaram.
Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes,
ergueu os olhos ao Céu
e pronunciou sobre eles a bênção.
Depois partiu-os e deu-os aos discípulos,
para eles os distribuírem pela multidão.
Todos comeram e ficaram saciados;
e ainda recolheram doze cestos dos pedaços que sobraram.
  
 

Breve comentário ao Evangelho.

A refeição da fração do pão, que Jesus celebrou com os seus discípulos, é destinada ao conjunto do seu povo. O próprio Jesus significou isso alimentando a multidão que O seguia, como Deus o havia feito outrora no deserto.

Para viver, é preciso comer. E como Deus nos quer vivos, Ele próprio intervém. Como um Pai que cuida dos seus filhos, quando estes não encontram o alimento necessário. A tradição de Israel tinha guardado a memória de uma intervenção providencial, em que Deus tinha alimentado o seu povo no deserto, depois da saída do Egipto, com o maná e as codornizes (Ex 16); era um pão vindo do céu, portanto, de Deus.

Por seu lado, Jesus alimenta o povo que está quase a fracassar. Vários detalhes anunciam a Eucaristia: Jesus parte os pães e fá-los distribuir pelos seus discípulos, como na comunhão: o povo está organizado, os Apóstolos fazem o serviço, é a Igreja; no deserto, o maná era apenas suficiente, mas aqui, no banquete do Senhor, restam cestos cheios, porque o pão de Jesus é-nos oferecido generosamente, para que tenhamos a vida em abundância (Jo 10,10).

É impossível isolar a «ordem de reiteração» da Eucaristia propriamente dita de outras ordens que Jesus nos deu: muito próximo da Eucaristia, há o «exemplo» do lava-pés; há ainda o «mandamento do amor» e a necessidade primordial de amar o nosso próximo; e hoje, o apelo a darmos nós mesmos de comer àqueles que nada têm que comer. Significando já o Reino onde todos os bens superabundam, Jesus recorda que Ele quer associar desde já todos os batizados à sua construção, ao seu anúncio. E para isso, Ele santifica-nos com a sua própria vida.

Dehonianos

O Canto na Liturgia

 

Antífona de Entrada

O Senhor alimentou-nos – C. Silva

O Senhor alimentou o seu povo – F. Santos

O Senhor alimentou o seu povo – M. Carneiro

Da flor da farinha os alimentou – M. Carneiro

 

Salmo Responsorial

O Senhor é sacerdote para sempre (Sl 109) – M. Luís

Sequência 

Terra exulta de alegria – M. Faria

Antífona da Comunhão

Quem come a minha carne – M. Simões

Quem come a minha carne – F. Santos

Quem come a minha carne – M. Carneiro

Tomai e comei – F. Silva

 

 

Outros cânticos para a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo

A minha carne é verdadeira comida – F. Silva

Abriu o Senhor as portas do Céu – Az. Oliveira

Bendito sejas, Senhor – A. Cartageno

Como é suave, Senhor – M. Luís

Corpo de Deus, Pão da vida – Az. Oliveira

Corpus Domini Nostri – M. Sousa Santos

Do Céu nos destes, Senhor, o pão – F.Santos

Ecce Panis – M. Ribeiro

Encheis a terra,Senhor – P. Miranda

Eucaristia, Corpo de Jesus –  P. Cruz

Eu sou o pão da vida – M. Luís

Eu sou o Pão da vidaquem me come não morrerá – B. Sousa

Eu sou o Pão vivo – M. Luís

Eu sou o Pão vivo – Duarte Morgado

Eu sou o Pão vivo descido do Céu – C. Silva

Isto é o meu corpo – F.Santos

Isto é o meu corpo – F. Santos

Isto é o meu corpo – C. Silva

Isto é o meu corpo – M. Carneiro

O Corpo de Jesus é alimento – A. Cartageno

O Corpo de Jesus é alimento –  D. Oliveira

O Pão de Deus  – J. Santos (NRMS 62| IC, p. 498)

O Pão que vem do Céu – T. Sousa

O Senhor abriu as portas do Céu – F. Silva

O Senhor deu-lhes o pão do Céu – Az. Oliveira

O vosso Corpo é o Pão – J. Santos

Ó Sagrado Banquete – C. Silva

Ó verdadeiro Corpo do Senhor – M. Simões

Ó verdadeiro Corpo do Senhor – C. Silva

Porque ele está connosco – F. Santos

Quem come deste pão – C. Silva

Quem comer deste pão – C. Silva

Quem come deste pão – M. Luís

Quem come deste pão – M. Luís

Saciastes o vosso povo – F. Silva

Senhor, Tu és o Pão – G. Kirbye

Somos o novo Israel – F. Santos

Vós sois o pão vivo, Senhor – F. Santos

Vós sois o pão vivo, Senhor – F. Silva

Ó sacrossanta Hóstia – J. Santos

 

 

 
 
 
 

ATITUDES FUNDAMENTAIS DA 

EUCARISTIA

 

 

INTRODUÇÃO

Que a Eucaristia é uma Festa é um dado adquirido. Mas é igualmente seguro que a Festa, biblicamente falando, é uma roda de alegria, um círculo aberto. Na verdade, na Bíblia, uma Festa é um encontro marcado (mô‘ed) , plural mô‘adîm, de ya‘ad [= marcar um encontro], com Deus e com os outros [1]. Sendo um encontro marcado com Deus e com os outros, então é sempre um espaço de alegria, de filialidade e de fraternidade. E se a Festa é de peregrinação, como são a Páscoa, as Semanas ou Pentecostes e as Tendas –, então a alegria, a filialidade e a fraternidade são ainda mais intensas, dado que Festa de peregrinação se diz, na língua hebraica, hag, plural hagîm. E hag deriva de hûg, que significa círculo, e, portanto, família, lareira, encontro, alegria, música, roda, dança, vida [2].

Os verbos implicam acção, traduzem atitudes, desenham passos e gestos. É, por isso, importante, neste estudo sobre a Eucaristia, começar por mostrar os verbos que lhe servem de suporte no Novo Testamento. Percorremos, para o efeito, todos os textos significativos que a manifestam: a) os cinco textos que se referem à instituição da Eucaristia (Mt 26,26-27; Mc 14,22-23; Lc 22,17-20; 1 Cor 11,23-26; 1 Cor 10,16), a que acrescentaremos ainda um texto do Livro dos Actos (27,35); b) os seis textos que habitualmente são mencionados a propósito da chamada «multiplicação dos pães» (Mt 14,19; 15,36; Mc 6,41; 8,6; Lc 9,16; Jo 6,11), a que acrescentaremos um sétimo (Lc 24,30), que também poderíamos catalogar na secção da instituição da Eucaristia. Apresentamos primeiro os verbos tal como aparecem no texto grego do NT, logo seguidos da respectiva versão em língua portuguesa. No que se refere à instituição da Eucaristia, apresentamos primeiro o pão, depois o cálice. No que diz respeito à chamada «multiplicação dos pães», apresentamos em primeiro lugar a primeira e depois a segunda, sendo que Lc 24,30 ocupa aqui o lugar da segunda, que falta em Lucas. João conta apenas uma.

 

1. TEXTOS REFERENTES À INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

Mt 26,26-27        Mc 14,22-23     Lc 22,17-20      1 Cor 11,23-26

1 Cor 10,16         Act 27,35

 

2. TEXTOS REFERENTES À «MULTIPLICAÇÃO» DOS PÃES

Mt 14,19                        Mc 6,41           Lc 9,16               Jo 6,11

Mt 15,36                        Mc 8,6             Lc 24,30

 

3. VERBOS FUNDAMENTAIS DA EUCARISTIA

Tendo em conta os textos atrás apresentados, podemos enunciar assim os verbos fundamentais, que traduzem as atitudes fundamentais que fazem a Eucaristia:

RECEBER, BENDIZER e AGRADECER,
PARTILHAR e DAR,
COMEMORAR, ANUNCIAR e ESPERAR

Debruçar-nos-emos de seguida sobre cada um destes verbos e respectivas atitudes.

 

3.1. RECEBER (1 Cor 11,23b-26; Mt 26,26-29)

Como se vê no alinhamento dos textos bíblicos acima enunciados, o verbo «receber» (lambánô) abre todos os textos. Vejamo-lo, a título de exemplo, agora inserido em dois textos seleccionados:

«11,23(…) O SENHOR JESUS, na noite em que ia ser entregue (paredídeto),  RECEBEU  (élaben) o pão (árton),  24e dando graças (eucharistêsas), partiu-o (éklasen) e disse: “Isto é o meu corpo, que é para vós; isto fazei para memória de mim”. 25Do mesmo modo fez com o cálice, depois da ceia, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; isto fazei, sempre que o beberdes, para memória de mim”.26Portanto, sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice, estais a anunciar (kataggéllete) a morte do Senhor até que Ele venha (áchris hoû élthê)» (1 Cor 11,23-26).

26,26Enquanto comiam, tendo RECEBIDO  (labôn) Jesus o pão (árton) e tendo bendito (eulogêsas), partiu-o (éklasen) e, tendo-o dado (dídômi) aos discípulos, disse: “RECEBEI  (lábete) e comei; isto é o meu corpo”. 27E tendo RECEBIDO  (labôn) um cálice, e tendo dado graças (eucharistêsas), deu-lho (édoken), dizendo: “Bebei dele todos;  28 isto é o meu sangue da aliança, que é derramado por muitos para remissão dos pecados”. 29Digo-vos a vós: “desde agora não beberei deste fruto da videira até (héôs) àquele dia em que beberei convosco o vinho novo no Reino do meu Pai”» (Mt 26,26-29).

O verbo «receber» (lambánô) qualifica a relação de Jesus em relação ao Pai, de quem recebeu tudo o que tem e é: «Este é o mandamento que recebi de meu Pai» (Jo 10,18; cf. Ap 2,28). O receber de Jesus em relação ao Pai está em relação com o «dar» do Pai a Jesus. O Pai deu ao Filho «tudo» (Jo 3,35; 13,3; 17,7; Mt 11,27), «ter a vida em si mesmo» (Jo 5,26), «as palavras» (Jo 17,8), o «julgamento» (Jo 5,22.27), «as obras» e «a obra» (Jo 5,36; 17,4), os homens (Jo 6,37.39; 10,29; 17,2.6.9-11-12.24; 18,9), a «glória» (Jo 17,22.24) … A identidade da pessoa do Pai constitui-se em dar tudo ao Filho, assim como a identidade do Filho se constitui em receber tudo do Pai. O Espírito, por sua vez, é aquele que recebe o que é do Filho, e que o Filho recebeu do Pai. E o que «recebe», o Espírito «anuncia» (Jo 16,13.14.15) [3]. A Eucaristia começa com um imenso movimento de recepção.

O homem bíblico deve viver de mãos abertas (kaph), mãos que recebem e dão. Deus governa o mundo com as mãos abertas, dando: «Ele governa o mundo com a palma da sua mão» (Ecli 18,3), que tem sempre posta sobre nós (Sl 139,5). O Talmud, que é a sabedoria hebraica condensada em cinco milhões de palavras, refere exemplarmente que o punho cerrado representa a sabedoria do imbecil, que pensa que detém o mundo nas malhas da sua rede. E refere depois que, quando a mão inicia o movimento de se abrir, é como as pétalas de uma flor que se abre à vida. E acrescenta: é assim que floresce a inteligência. E, quando a mão se abre completamente, é a mão do sábio, que não retém nada, mas conhece o valor do encontro e do dom. E, cruzando agora as duas mãos abertas, ficamos com a imagem do «pássaro, livre, que voa» [4].

Processo inverso ao da filosofia, desde Zenão a Platão, Descartes, Fichte e Nietzsche, que apresentam o conhecimento como a captura ou compreensão que o sujeito faz do objecto. A verdade (a-lêtheia) é assim o desvelamento ou desocultação a que o sujeito submete o objecto, para dele se apoderar, representando-o e reproduzindo-o na mente, «adequação entre a coisa e a mente» (adequatio rei et intellectus), como referem Aristóteles e Tomás de Aquino. O último Heidegger, o Heidegger de depois de Sein und Zeit  (1926), o Heidegger de Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis),  escrito entre 1936 e 1938, mas publicado postumamente, em 1989[5], considera que esta concepção de verdade é a matriz da violência do ocidente, e diz as coisas de outra maneira: não é o sujeito que captura e desoculta o objecto, mas é o objecto que sai do seu esconderijo e se oferece ao homem como dom, como evento (Ereignis). Por isso, a função do sujeito já não é capturar e dominar com o que há de «prender» no compreender [6], mas acolher com espanto e reconhecimento. A Bíblia e a teologia estão claramente do lado do último Heidegger. Mas vão muito mais longe: não se trata de objectos que se entregam ao homem; trata-se de um Tu, o Tu de Deus, que, por amor, vem até ao homem e a ele se entrega por amor [7], debruçando-se sobre ele e abaixando-se até ao ponto de lhe lavar os pés e a alma [8], de cuidar dele, de o alimentar, de lhe afagar o rosto, de o ensinar a andar:

«11,3Fui Eu que ensinei a andar Efraim,
que os ergui nos meus braços,
mas não conheceram que era Eu que cuidava deles!
4Com vínculos humanos (’adam) Eu os atraía.
Com laços de amor,
Eu era para eles como os que erguem (merîmîm: part. de rûm) uma criancinha de peito (‘ûl) contra a sua face (lehêhem: de  le),
e me debruçava (natah) sobre ela para a alimentar» (Os 11,3-4).

Mãos abertas para Receber. Para Acolher. Para Acariciar. Para Dar. Para Repartir. Para Condividir.

Receber é, portanto, um grande verbo bíblico, que traduz a maneira de ser de Deus e do homem. É paradigmático que a Bíblia apresente o pecado como a atitude de o ser humano não querer mais viver de mãos abertas, recebendo-se e recebendo tudo de Deus, que dá tudo ao homem (Gn 2), e queira passar a viver de mãos fechadas, fechado na sua autonomia, manifestada naquela atitude de estender a mão para apanhar, possuir e comer um fruto de uma árvore, por conta própria e a seu bel-prazer (Gn 3,6).

 

3.2. BÊNÇÃO/BENDIZER/DIZER BEM/QUERER BEM/FAZER BEM

3.2.1. Nós bendizemos

Apresentamos também, neste apartado, apenas alguns textos seleccionados e significativos, para se poder ver o termo «bênção» ou o verbo «bendizer» no seu contexto:

«10,16O cálice da BÊNÇÃO  (tò potêrion tês eulogías) que BENDIZEMOS  (eulogoûmen) não é comunhão no sangue de Cristo? O pão que partimos (kláô) não é comunhão no corpo de Cristo?» (1 Cor 10,16).

«26,26Enquanto comiam, tendo recebido (labôn) Jesus o pão (árton) e tendo BENDITO  (eulogêsas), partiu-o (éklasen) e, tendo-o dado (dídômi) aos discípulos, disse: “recebei (lábete) e comei; isto é o meu corpo”. 27E tendo recebido (labôn) um cálice, e tendo dado graças (eucharistêsas), deu-lho (édoken), dizendo: “Bebei dele todos; 28 isto é o meu sangue da aliança, que é derramado por muitos para remissão dos pecados”. 29Digo-vos a vós: “desde agora não beberei deste fruto da videira até (héôs) àquele dia em que beberei convosco o vinho novo no Reino do meu Pai”» (Mt 26,26-29).

«24,30E aconteceu que, tendo-se reclinado à mesa (kataklithênai: aor. inf. pass. de kataklínô) com eles, recebeu (labôn: part. aor2 de lambánô) o pão,  BENDISSE  (eulógêsen: aor. de eulogéô), e partiu (klásas: part. aor. de kláô) e dava-lhes (epedídou: imperf. de epidídômi) (Lc 24,30).

É sabido que o primeiro texto apresentado (1 Cor 10,16) é considerado a mais antiga evocação da Eucaristia, que, então, se chamaria eulogía, «bênção».

3.2.2. Deus bendiz

Deus que bendiz ou abençoa é uma das constantes da inteira Escritura. Com a sua bênção permanente (Sl 139,5; Ecli 18,3), Deus enche-nos de bem e de bondade. Vejamos apenas uma pequena, mas bela amostra das bênçãos de Deus nas Escrituras:

«6,24Deus te BENDIGA e te guarde,
25ilumine YHWH o seu rosto sobre ti e te faça graça (hanan),
26te faça ver YHWH o seu rosto e te conceda a paz!
27Porão assim o meu nome sobre os filhos de Israel e Eu os BENDIREI» (Nm 6,24-27).
 
«48,15… “Que o Deus diante de quem caminharam os meus pais, Abraão e Isaac, que o Deus que foi o meu Pastor desde que eu nasci até hoje,
16que o Anjo que me salvou de todo o mal BENDIGA estas crianças (…),
que elas cresçam e se multipliquem sobre a terra!”» (Gn 48,15-16).
 
«3,26Para vós, antes de mais, Deus ressuscitou o seu Servo e enviou-o para vos BENDIZER  (eulogéô) (Act 3,26)».
 

3.2.3. Outros bendizeres

Apresentamos ainda, neste último apartado dedicado ao verbo «bendizer», um entrançado de pequenas fórmulas que atravessam a Escritura e a liturgia Eucarística:

«41,14BENDITO seja YHWH, Deus de Israel, desde agora e para sempre!» (Sl 41,14; cf. 72,18; 89,53; 106,48), servindo de separador aos cinco livros dos Salmos.

«1,68BENDITO seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo» (Lc 1,68) (Zacarias).

«1,3BENDITO  (eulogêtós) o Deus e Pai do Senhor nosso Jesus Cristo,

que nos BENDISSE (eulogêsas) com todas as BÊNÇÃOS (eulogía) espirituais em Cristo» (Ef 1,3) (Paulo).

«6,28BENDIZEI os que vos maldizem» (Lc 6,28).

«BENDITO sejais, Senhor, Deus do Universo, pelo pão que recebemos da vossa BONDADE… (Oferta dos dons).

«ABENÇOE-VOS (BENDIGA-VOS)  Deus todo-poderoso, Pai… (Bênção final).

É sabida a importância da Bênção bíblica (berakah), que é sempre unitiva – ao contrário da Maldição (‘alah), que divide –, e une num círculo inquebrável Deus e o Homem, o Homem e Deus, e os Homens entre si, estendendo-se a sua influência benfazeja à inteira criação. Partindo de Deus, então é Deus que une a si e entre si a humanidade bendita. Bendizer Deus, por parte do homem, implica uma verdadeira ruptura «epistemológica»: a bênção reconduz as coisas criadas ao seu estatuto de dom e retira ao homem o poder sobre elas e entrega-o a Deus, ficando assim o homem constituído em puro beneficiário em relação às coisas [9]. Numa perspectiva bíblica, as coisas não são objecto de bênção, mas motivo de bênção [10]Barak é o grande verbo hebraico que traduz a força da bênção bíblica, unitiva e circular. E é debarak e da berakah hebraica que se desdobram os verbos eulogéô eeucharistéô, em que assenta a nossa Eucaristia [11], e fazem dela um círculo unitivo de bênção e de amor.

 

3.3. DAR GRAÇAS / AGRADECER  (1 Cor 11,23-26)

Para contextualizar a locução «dar graças» (eucharistéô), apresentamos o texto muito significativo de 1 Cor 11,23-26):

«11,23 (…) O Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue (paredídeto), recebeu (élaben) o pão (árton),  24e DANDO GRAÇAS (eucharistêsas), partiu-o (éklasen) e disse: “Isto é o meu corpo, que é para vós; isto fazei para memória de mim”. 25Do mesmo modo fez com o cálice, depois da ceia, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; isto fazei, sempre que o beberdes, para memória de mim”.26Portanto, sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice, estais a anunciar (kataggéllete) a morte do Senhor até que Ele venha (áchris hoû élthê)» (1 Cor 11,23-26).

Já sabemos que os termos eulogía e eucharistía, ambos derivados do hebraico barak/berakah, são, no NT, usados indiferentemente como sinónimos (basta ver como são usados indistintamente nos textos da instituição da Eucaristia e da chamada «multiplicação dos pães»). Na tradição litúrgico-eclesial, acabou, no entanto, por prevalecer o termo eucharistía para indicar o rito por ecelência da celebração cristã [12].

 

3.4. PARTIR / FRACÇÃO DO PÃO  (Act 2,42; Lc 24,35)

Mais uma vez, para contextualizar e sublinhar esta atitude, oferecemos uma pequeníssima, mas significativa selecção de textos, com o intuito de mostrar bem a dimensão intensamente fraterna da Eucaristia:

«2,42Eram perseverantes no ensino dos Apóstolos e na comunhão, na FRACÇÃO DO PÃO (klásis toû ártou) e na oração» (Act 2,42).

«24,30E aconteceu que, tendo-se reclinado à mesa (kataklithênai: aor. inf. pass. de kataklínô) com eles, recebeu (labôn: part. aor2 de lambánô) o pão, bendisse (eulógêsen: aor. de eulogéô), e PARTIU  (klásas: part. aor. de kláô) e dava-lhes (epedídou: imperf. De  epidídômi). 31Foram abertos (diênoíchthêsan: aor. pass. de dianoígô) então os seus olhos e reconheceram-no (epégnôsan: aor2 de epignôskô), mas ele desapareceu da vista deles. […]  35 E eles explicavam (exêgoûnto: imperf. de exêgéomai) as coisas acontecidas no caminho (tà en tê hodô) e como foi reconhecido (egnôsthê: aor. pass. de ginôsko) por eles NO PARTIR DO PÃO» (en tê klásei toû ártou) (Lc 24,30-35).

Na verdade, não se trata de «partir o pão» para vincar uma simples dimensão ou sentimento sócio-caritativo. Trata-se, antes, de afirmar que nenhum de nós é dono, mas simples servo, pertencendo a Deus a propriedade de tudo, com base no espantoso texto de Lv 25,23: «Toda a terra é minha, e vós sois, para mim, estrangeiros (gerîm) e hóspedes (tôshabîm)». Partir o pão entre nós é então uma exigente afirmação teológica e ontológica da soberania boa de Deus e da nossa fraternidade recebida[13].

3.4.1. Hospedados na casa de Deus: «Secção dos pães» (Mc 6,30-8,26)

O episódio a seguir referido ilustra e esclarece a afirmação teológica que acabámos de fazer no apartado anterior acerca da soberania boa de Deus e da nossa condição de hóspedes e de irmãos:

«6,30E reúnem-se os apóstolos junto de JESUS e contam-lhe todas as coisas que tinham feito e ensinado.  31Ele diz-lhes: “Vinde vós, à parte, para um lugar deserto, e descansai um pouco”. Eram, na verdade, muitos os que vinham e partiam, e nem sequer para comer tinham tempo.  32E partiram numa barca para um lugar deserto, à parte. 33Viram-nos, porém, partir, e sabendo, muitos, a pé, de todas as cidades, correram e chegaram antes deles.  34E tendo saído da barca, viu uma grande multidão e TEVE MISERICÓRDIA (esplagchnístê) deles, porque eram como ovelhas sem pastor (cf. Is 53,6).

E COMEÇOU A ENSINAR-LHES (êrxato didáskein) muitas coisas.  35E tendo a hora adiantado muito, aproximaram-se d’Ele os discípulos d’Ele e diziam: “O lugar é deserto e a hora adiantada.  36MANDA-OS EMBORA, para que, partindo para os campos e aldeias à volta, COMPREM de comer PARA SI MESMOS  (heautoîs) ”. 37Então Ele, respondendo, disse-lhes: “DAI-LHES vós de comer”. Dizem-lhe: “Partindo, compraremos duzentos denários de pães (ártous) para lhes dar de comer?” 38Ele diz-lhes. “Quantos pães (ártous) tendes? Ide ver”. E tendo sabido, dizem: “Cinco, e dois peixes”. 39E ordenou-lhes que fizessem reclinar (anaklínô) a todos, em grupos, sobre a erva verde (klôròs chórtos). 40E sentaram-se em grupos de cem e de cinquenta.  41E recebendo (labôn) os cinco pães (ártous) e os dois peixes, levantou os olhos (anablépsas) para o céu, bendisse (eulógêsen) e PARTIU  (katéklasen) os pães (ártous) e dava (edídou) aos discípulos d’Ele para que os pusessem diante deles, e os dois peixes repartiu para todos.  42E todos comeram e foram cheios,  43e recolheram doze cestas (kóphinoi)[14] cheias de pedaços de pão (klásmata) e dos peixes.  44Os que tinham comido os pães (ártous) eram cinco mil homens (ándres)» (Mc 6,30-44).

O episódio que acabámos de referir, retirado do Evangelho de Marcos, é conhecido como a «primeira “multiplicação dos pães”», realizada, neste caso, em mundo judaico. Mas vê-se bem que o título de «multiplicação» é inadequado, pois o que está aqui em causa não é, na verdade, uma multiplicação, mas uma divisão ou condivisão [15].

Neste episódio, salta à vista o comportamento compassivo, acolhedor, inclusivo e de partilha de Jesus em confronto com o comportamento insensível, não-acolhedor, exclusivista, frio, mercantilista, consumista, egoísta e egocêntrico destes discípulos de Jesus, que propõem a Jesus que mande as pessoas embora, para que cada um compre de comer para si mesmo (Mc 6,36). O diagrama a seguir mostra os dois comportamentos em confronto:

Jesus Discípulos
Misericórdia Acolher

Ensinar

Dar

Condividir

Insensibilidade Excluir

Mandar embora

Comprar

Cada um para si

A Escritura mostra que o perigo espreita sempre que se quebra o círculo da fraternidade, e alguém passa a viver, a comprar, a acumular para si mesmo, ou a querer salvar-se a si mesmo (heautô) (Ez 34,2; Lc 12,21; 23,35.37.39; Rm 14,7; 2 Cor 5,15)[16]:

«34,2Filho do Homem, profetiza contra os pastores de Israel. Profetiza e diz-lhes: “Contra os pastores, assim diz o Senhor YHWH: Ai (hôy) dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos (ro‘îm ’ôtam TM; poiménes heautoús LXX) ”» (Ez 34,2; cf. 34,8.10).

«12,21Assim acontece àquele que entesoura (ho têsaurízôn) para si mesmo (heautô), e não é rico para Deus» (Lc 12,21).

«23,35Também os chefes faziam pouco dele, dizendo: “Salvou outros; que se salve a si mesmo (heautón)» (Lc 23,35).

«23,36Também os soldados faziam pouco dele, e, aproximando-se, ofereciam-lhe azeite,  37e diziam: se tu és o Rei dos judeus, salva-te a ti mesmo (seautón)”» (Lc 23,36-37).

«23,39Um dos malfeitores suspensos blasfemava, dizendo-lhe: “Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo (seautón) e a nós”» (Lc 23,39).

«147Nenhum de nós para si mesmo (heautô) vive e nenhum para si mesmo (heautô) morre;  8se vivemos, é para o Senhor (tô Kyríô) que vivemos; se morremos, para o Senhor (tô Kyríô) morremos» (Rm 14,7).

«5,15E por todos (Cristo) morreu, para que os vivos não vivam para si mesmos (heautoîs), mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou» (2 Cor 5,15).

Sempre neste sentido, o inédito da Cruz é «obsceno», no sentido etimológico, fica fora da cena do nosso imaginário. Diz muito bem Silvano Fausti: «Um sistema de violência acaba sempre por repousar sobre uma alternativa: matar ou ser morto. Nós escolhemos preventivamente a primeira: cada um de nós faz o mal que pode, como profissão principal, de maneira a ser bem sucedido: o ladrão ou o banqueiro, o comerciante ou o operário, o médico ou o barbeiro, o patrão ou o criado, o padre ou o assaltante, o benfeitor ou o delinquente. Cada um, com os meios que tem, pensa primeiro em si» [17]. Na verdade, se cada um é inimigo do outro por definição, e se, para cada um, prioritária é a salvaguarda da ameaça do outro, as possibilidades do eu são vencer ou sucumbir, e, em caso extremo, matar ou ser morto [18]».

O que estes malfeitores, que somos nós, não sabemos, e, por causa deste nosso não saber, fazemos o mal, é que existe um Pai, a quem compete cuidar dos seus filhos. E se temos um Pai que cuida de nós, não nos compete ser inimigos, mas irmãos. E se somos filhos e irmãos, também não compete a cada um prover-se e salvar-se a si mesmo, pois é o nosso Pai que nos alimenta, nos veste e nos salva (Mt 6,26-34).

Aí está outra vez à vista o inédito da Cruz: Jesus não se salva a si mesmo, porque salvar-se a si mesmo é mau. Na verdade, é para se salvarem a si mesmos que os homens se odeiam e fazem guerra. Ora, Jesus quer salvar-nos a nós. E, para nos salvar a nós, perde-se a si mesmo. Exactamente o contrário do que fazemos nós, que perdemos os outros pensando que assim nos salvamos a nós mesmos [19].

 

3.5. DAR

A atitude das mãos abertas em relação a Deus, para tudo receber dele, deve agora manter-se em direcção aos nossos irmãos, sublinhando a atitude de dar. Eis também, a título ilustrativo, um breve repositório de textos:

«26,26Enquanto comiam, tendo recebido (labôn) Jesus o pão (árton) e tendo bendito (eulogêsas), partiu-o (éklasen) e, tendo-o DADO  (dídômi) aos discípulos, disse: “recebei (lábete) e comei; isto é o meu corpo”.27E tendo recebido (labôn) um cálice, e tendo dado graças (eucharistêsas),  DEU-lho (édoken), dizendo: “Bebei dele todos;  28 isto é o meu sangue da aliança, que é derramado por muitos para remissão dos pecados”. 29Digo-vos a vós: “desde agora não beberei deste fruto da videira até (héôs) àquele dia em que beberei convosco o vinho novo no Reino do meu Pai”» (Mt 26,26-29).

«24,30E aconteceu que, tendo-se reclinado à mesa (kataklithênai: aor. inf. pass. de kataklínô) com eles, recebeu (labôn: part. aor2 de lambánô) o pão, bendisse (eulógêsen: aor. de eulogéô), e partiu (klásas: part. aor. de kláô) e DAVA-lhes (epedídou: imperf. de epidídômi)» (Lc 24,30).

«16,20nutriste o teu povo com um alimento de ANJOS, / DESTE-lhe o PÃO do CÉU, / com mil sabores:/ 21manifestava a tua DOÇURA (glykýtês). // 26Assim os teus FILHOS QUERIDOS aprenderam, Senhor, / que NÃO É A PRODUÇÃO DE FRUTOS que alimenta os homens, / mas a tua palavra que a todos sustenta» (Sb 16,20-21.26).

Textos sublimes. Mostram, sobretudo o último, que não são as coisas que contam, mas a bondade, a doçura e a intencionalidade de Deus que as habita e as faz ser [20], e que os nossos gestos devem realizar no quotidiano essas maravilhas que celebramos ritualmente na Eucaristia. Note-se ainda, no texto de Lc 24,30, a tradução da vida toda de Jesus como aquele que dá sempre – continuando, portanto, a dar ainda hoje –, atitude expressa naquele imperfeito de duração (Dava-lhes) [21].

 

3.6. COMEMORAR / FAZER EM MEMÓRIA DE MIM

Seleccionámos um único texto, para nos ensinar esta importante atitude eucarística, que passa muitas vezes despercebida:

«11,23Eu recebi (parélabon) do Senhor o que também vos transmiti (parédôka): que o Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue (paredídeto), recebeu (élaben) o pão (árton),  24e dando graças (eucharistêsas), partiu-o (éklasen) e disse: “Isto é o meu corpo, que é para vós; isto fazei para MEMÓRIA DE MIM” (toûto poieîte eis tên emên anámnêsin). 25Do mesmo modo fez com o cálice, depois da ceia, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; isto fazei, sempre que o beberdes, para MEMÓRIA DE MIM” (toûto poieîte… eis tên emên anámnêsin). 26Portanto, sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice, estais a anunciar (kataggéllete) a morte do Senhor até que Ele venha (áchris hoû élthê)» (1 Cor 11,23-26).

Trata-se de «fazer memória» de uma pessoa concreta. Não consiste em qualquer procedimento mental ou psicológico tipicamente cartesiano ou do pensamento moderno, nem sequer da muito falada «reactualização», de acordo com a escola do mito ciclicamente encenado pelo rito, «a escola mítico-ritual» (The Myth and Ritual School), de A. Bentzen, S. H. Hooke e S. Mowinckel [22]. Trata-se do nosso envolvimento pessoal na proclamação da morte de Cristo com a nossa vida, e com estilos de vida concretos, que resultam da compreensão da nossa identidade de cristãos em plena comunhão com Cristo que dá a sua vida para salvar a nossa [23]. «Fazer memória» de Jesus e da sua morte na Cruz não quer dizer recordar o seu sofrimento, porque o sofrimento, em si mesmo, não redime, e, como ensina a experiência, pode mesmo fechar-nos na incompreensão; também não se trata de recordar a coragem com que enfrentou a paixão e a morte injustas (também os heróis gregos souberam enfrentar com dignidade a sua sorte adversa); trata-se, antes, de contemplar com a inteligência e o coração o milagre do amor que, naquela Cruz, se despregou [24].

 

3.7. ANUNCIAR

Voltamos ao grande texto de 1 Cor 11,23-26, para inculcar esta fundamental atitude Eucarística, também bastante negligenciada:

«11,23Eu recebi (parélabon) do Senhor o que também vos transmiti (parédôka): que o Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue (paredídeto), recebeu (élaben) o pão (árton),   24e dando graças (eucharistêsas), partiu-o (éklasen) e disse: “Isto é o meu corpo, que é para vós; isto fazei para memória de mim” (toûto poieîte eis tên emên anámnêsin). 25Do mesmo modo fez com o cálice, depois da ceia, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; isto fazei, sempre que o beberdes, para memória de mim” (toûto poieîte… eis tên emên anámnêsin). 26Portanto, sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice,  ESTAIS A ANUNCIAR  (kataggéllete) a morte do Senhor até que Ele venha (áchris hoû élthê)» (1 Cor 11,23-26).

A sintaxe e o encadeado das palavras mostra que a ênfase é colocada na «morte do Senhor», mas apresenta também a forma verbalkataggéllete como um presente contínuo, com o significado de «vós estais a anunciar». Esta forma de dizer, não só retoma da anterior atitude a nossa identificação com Cristo que dá a sua vida por nós, mediante estilos de vida concretos, como dá um passo em frente, reclamando de nós, como requer em muitas outras passagens o uso do verbo kataggéllô, o anúncio concreto do Evangelho (1 Cor 9,14), pregar a palavra de Deus (Act 13,5), pregar Cristo (Act 4,2; Fl 1,17-18). Este kataggéllô, além de reclamar a nossa radical identificação com Cristo que dá a sua vida por nós, convida-nos ainda a subir ao púlpito para proclamar o Evangelho de Cristo, alto e bom som [25]. Anunciar a morte de Jesus não tem qualquer sentido fúnebre, não é anunciar o sofrimento dorido ou a coragem do herói, tão-pouco a resignação ou, no pólo oposto, qualquer aspecto belicoso – do tipo in hoc signo vinces, de constantiniana memória, ou dos estandantes dos cruzados [26], ou qualquer outra manifestação de heroicidade por alguém e contra alguém, como vemos nos modernos kamikaze  –, mas sim a soberana novidade da dádiva da vida.

 

3.8. ESPERAR / ATÉ QUE ELE VENHA

Ainda o mesmo texto de 1 Cor 11,23-26 para vincar uma nova atitude da esperança cristã, também, por sinal, bastante esquecida:

«11,23Eu recebi (parélabon) do Senhor o que também vos transmiti (parédôka): que o Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue (paredídeto), recebeu (élaben) o pão (árton),   24e dando graças (eucharistêsas), partiu-o (éklasen) e disse: “Isto é o meu corpo, que é para vós; isto fazei para memória de mim”. 25Do mesmo modo fez com o cálice, depois da ceia, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; isto fazei, sempre que o beberdes, para memória de mim”.26Portanto, sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice, estais a anunciar (kataggéllô) a morte do Senhor ATÉ QUE Ele venha (áchris hoû élthê)» (1 Cor 11,23-26).

Este «até que» desenha claramente a grande atitude da esperança cristã, que deve informar todos os gestos do nosso quotidiano, mesmo os mais humildes, como os textos a seguir referidos documentam [27]:

«26,29ATÉ QUE  (héôs) venha o Reino de Deus» (Mt 26,29; Mc 14,25; Lc 22,16-18);

«13,33O Reino de Deus é semelhante ao fermento que uma mulher tomou e introduziu em sessenta quilos de farinha “ATÉ QUE” (héôs) tudo fique levedado» (Mt 13,33; Lc 13,21);

«15,4Qual o homem entre vós que tendo cem ovelhas e tendo perdido delas uma só, não deixa as noventa e nove no deserto e vai atrás da que perdeu  ATÉ  (héôs) a encontrar?» (Lc 15,4);

«15,8Ou qual a mulher que tendo dez dracmas, se perder uma só, não acende uma luz e varre a casa e procura atentamente  ATÉ  (héôs) a encontrar?» (Lc 15,8).

«10,8ESPERARÁS sete dias  ATÉ  (‘ad TM / héôs LXX) eu ir ter contigo para te fazer ver o que deves fazer» (1 Sm 10,8).

A esperança bíblica e cristã traduz-se numa fortíssima atitude eucarística, que torna o nosso rosto tenso para receber Alguém (apekdechómethaapò + ek + déchomai) (Rm 8,25), no sentido de quem vive de (ek) receber e de se receber (déchomai) de Alguém (1 Cor 1,7)[28], saindo de si (apó) para se orientar completamente para o Outro (Sl 130,5-6):

«130,5Eu espero (qiwwitî) YHWH, / nele espera (qiwwetah) a minha alma (naphshî), / e na sua palavra confio (hôhaltî). / 6A minha alma para o Senhor, / mais do que as sentinelas para a manhã, / as sentinelas para a manhã» (Sl 130,5-6).

Esta intensa prece individual assenta na forma  piel  (intensiva) do verbo  qawah  (2 vezes) – «esperar em» – e na forma  hiphil  (causativa) do verbo  yahal  – «esperança e confiança em nós provocada» por Deus, tensão nova e segura, caminho novo e seguro, aberto por Deus e trilhado por nós com a confiança que brota do amor [29].

A mesma atitude é expressa com apokaradokía:   apò  +  kára  +  dokía  (Rm 8,19; Fl 1,20)[30], termo cunhado por Paulo, e que traduz um rosto tenso para Deus, à espera de Deus. Tanta é a força da espera esperante que nos move, que é como se o nosso rosto (kára), de tão tendido (dokía) pela atitude da espera, quase se desligasse do pescoço (apó).

No mundo grego, esperança é elpís, e tem o significado de «previsão», «lícita expectativa», assente nos nossos calculismos e exercícios racionais [31]. Ao contrário, a esperança bíblica e cristã é sem medida, tem a ver com o nunca antes visto, aponta para além das leis da natureza, está em luta aberta contra as evidências. Trata-se de «esperar contra a esperança» (par’ elpída ep’ elpídi = contra a esperança na esperança)» (Rm 4,18) [32]. É assim que Paulo define a atitude de Abraão. No mundo hebraico, esperança é tiqwah [33], e deriva de qaw, que pode significar «fio», «fita métrica», «cordel para medir». Percebe-se que tem a ver com o «fio» que se estende para medir, até chegar à medida ainda sem medida e sem solução à vista, mas que tem solução recebida de Deus. É como o «fio», a «corda», o «arame» estendido entre a dor e a consolação esperada, entre a humanidade e Deus, fio tenso e seguro entre duas mãos, a de Deus e a nossa. A esperança bíblica e cristã consiste na dupla atitude de estarmos sempre à espera de Alguém, e de sabermos que Alguém espera por nós.

 

4. CÂNON, ANÁFORA, PREFÁCIO, ORAÇÃO EUCARÍSTICA

O termo «cânon», do hebraico nekonah [34], que significa «cana», «unidade de medida», é o mais antigo e venerando em uso no Ocidente, desde S. Gregório Magno (535-604) até ao II Concílio do Vaticano. Com o recurso a este termo, a tradição quis dizer que o louvor ou a bênção, que se segue à oração universal, não é apenas uma oração entre outras, mas a oração normativa e paradigmática, a oração por excelência [35]. Abre com: «Corações ao alto!» e «Demos Graças ao Senhor, nosso Deus»! Termina com a doxologia epiclética: «Por Cristo, com Cristo, em Cristo, / a vós, Deus Pai, todo-poderoso, / na unidade do Espírito Santo, / toda a honra e toda a glória, / agora e para sempre».

O termo «anáfora» impôs-se sobretudo nas Igrejas do Oriente, e implica um movimento ascensional, sair do «eu», até à alteridade divina, num puro movimento de louvor e reconhecimento [36]. Em tudo semelhante é o termo «prefácio», que remete para o latim  preafari  [= proclamar], que põe em evidência o aspecto público e solene do louvor que o presidente da assembleia formula oficialmente em nome de toda a assembleia celebrante [37].

A locução «oração eucarística» impôs-se sobretudo a partir do II Concílio do Vaticano [38], e traduz todos os significados já apresentados nos verbos analisados em 5.

Apraz-me terminar recorrendo a S. Paulo e à Anáfora III: «Na noite em que Ele ia ser entregue…» (1 Cor 11,23): assim começa a mais bela melodia que conheço!

Dá-nos, Senhor, um coração novo,
capaz de conjugar em cada dia
os verbos fundamentais da Eucaristia:
RECEBER, BENDIZER e AGRADECER,
PARTILHAR e DAR,
COMEMORAR, ANUNCIAR e ESPERAR.
 
Dá-nos, Senhor, um coração sensível e fraterno,
capaz de escutar
e de recomeçar.
 
Mantém-nos reunidos, Senhor,
à volta do pão e da palavra.
E ajuda-nos a discernir
os rumos a seguir
nos caminhos sinuosos deste tempo,
por Ti semeado e por Ti redimido.
 
Ensina-nos, Senhor,
a saber colher
o Teu amor
semeado e redentor.
 
Única fonte de sentido
que temos para oferecer
a este mundo
de que és o único Salvador. 

 

D. António Couto


[1] G. DEIANA, Levitico. Nuova versione, introduzione e commento, Milão, Paoline, 2005, p. 244-245 e 254; J. ELIAS, The Haggadah. Passover Haggadah / with translation and a new commentary based on Talmudic, Midrashic, and Rabbinic Sources, Nova Iorque, Mesorah Publications, 3.ª ed., 1980, p. 58.

[2] J. ELIAS, The Haggadah, p. 58.

[3] G. FERRARO, Il Paraclito, Cristo, il Padre nel quarto Vangelo, Cidade do Vaticano, Editrice Vaticana, 1996, p. 137-138.164; S. A. PANIMOLLE,Dio Padre nel Nuovo Testamento, in S. A. PANIMOLLE (ed.), Abbà-Padre(Dizionario di Spiritualità Biblico Patristica [= DSBP], 1), Roma, Borla, 1992, p. 132-133; C.-J. PINTO DE OLIVEIRA, Le verbe Didónai comme expression des rapports du Père et du Fils dans le IVe Évangile, in Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, 49, 1965, p. 81-104.

[4] M.-A. OUAKNIN, Les dix commandements, Paris, Seuil, 1999, p. 250-251.

[5]  M. HEIDEGGER, Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), Frankfurt am Main, Klostermann, 1989. Veja-se a recente tradução italiana Contributi alla Filosofia (dall’Evento), Milão, Adelphi Edizioni, 2007.

[6] Expressão usada por E. LEVINAS, Ética e infinito. Diálogos com Philippe Nemo, Lisboa, Edições 70, 2000, p. 53.

[7] C. DI SANTE, Parole di luce. Segnavia dello Spirito, Villa Verucchio, Pazzini, 2005, p. 119-126.

[8] H. URS VON BALTHASAR, L’amour seul est digne de foi, Aubier, Montaigne, 1966, p. 130-131.

[9] C. DI SANTE, La Preghiera di Israele. Alle origini della liturgia cristiana, Casale Monferrato, Marietti, 1985, p. 44-45.

[10] C. DI SANTE, L’eucaristia terra di benedizione. Saggio di Antropologia Biblica, Bolonha, EDB, 1987, p. 13.

[11] C. DI SANTE, La preghiera eucaristica erede e interprete della berakah, in A. N. TERRIN (ed.), Scriptura crescit cum orante. Bibbia e liturgia – II, Pádua, Messagero, 1993, p. 131-150; C. DI SANTE,L’eucaristia terra di benedizione.

[12] C. DI SANTE, L’eucaristia terra di benedizione, p. 11.

[13] C. DI SANTE, L’eucaristia terra di benedizione, p. 27-29 e 176-202; C. DI SANTE, Parola e Terra. Per una teologia dell’ebraismo, Génova, Marietti, 1990, p. 48-58.

[14] De notar as doze cestas (kóphinoi) dos judeus (6,43; 8,19) em confronto com os sete cestos (spyrídes) dos pagãos (8,8.20). Diferença de tamanho e diferente simbologia numérica.

[15] Ver, a propósito, a inteligente reflexão de C. DI SANTE, L’Eucaristia terra di benedizione, p. 190-202; C. DI SANTE, Eucaristia. L’amore estremo, Villa Verucchio, Pazzini, 2005, p. 110-112; C. DI SANTE,Risponsabilità. L’io-per-l’altro, Roma – Fossano, Lavoro – Esperienze, 1996, p. 154-157; G. PERINI, Le domande di Gesù nel Vangelo di Marco. Approccio pragmatico: ricorrenze, uso e funzioni, Roma – Milão, Pontificio Seminario Lombardo – Glossa, 1998, p. 75.

[16] A. SERRA, La fuga e il ritorno del figlio prodigo (Lc 15,11-32). Parabola del peccato e della conversione d’Israele?, in R. FABRIS (ed.), La Parola di Dio cresceva (At 12,24), p. 238.

[17] S. FAUSTI, L’Idiozia. Con postilla sul giubileo, Milão, Àncora, 1999, p. 53.

[18] C. DI SANTE, La passione di Gesù, 136.

[19] S. FAUSTI, L’Idiozia, p. 57-58.

[20] A. WÉNIN, Pas seulement de pain… Violence et alliance dans la Bible, Paris, Cerf, 1998, p. 220-221.

[21] Ch. PERROT, Emmaüs ou la rencontre du Seigneur (Lc 24,13-35), in M. BENZERATH, A. SCHMID, J. GUILLET (eds.), La Pâque du Christ Mystère de Salut. Mélanges offerts au P. F.-X. Durrwel pour son 70eanniversaire avec un témoignage du jubilaire, Paris, Cerf, 1982, p. 164.

[22] A. C. THISELTON, The First Epistle to the Corinthians. A Commentary on the Greek Text, Grand Rapids – Cambridge – Carlisle, Eerdmans – Paternoster, 2000, p. 878-879, com outras referências.

[23] A. C. THISELTON, The First Epistle to the Corinthians, p. 880-882.

[24] C. DI SANTE, Eucaristia. L’amore estremo, p. 76.

[25] A. C. THISELTON, The First Epistle to the Corinthians, p. 886-887.

[26] G. BARBAGLIO, Il pensare dell’apostolo Paolo, Bolonha, EDB, 2004, p. 118.

[27] P. GRELOT, L’institution du «Repas du Seigneur». Pour une lecture des textes parallèles, in Esprit et Vie, 34-35-36, 1996, p. 478.

[28] B. MAGGIONI, Il Dio di Paolo. Il vangelo della grazia e della libertà, Milão, Paoline, 2.ª ed. actualizada e ampliada, 2008, p. 113.

[29] E. S. GERSTENBERGER, Psalms, Part 2, and Lamentations [«The Forms of the Old Testament Literature», Vol. XV], Grand Rapids – Cambrigde, Eerdmans, 2001, p. 356-357.

[30] O termo apokaradokía, de apo + kara + dokéô [= fora de + cara (rosto) + esperar], não aparece no grego antes do cristianismo, e Paulo é o único a usá-lo no NT (Rm 8,19; Fl 1,20), e mostra o gesto de quem alonga o pescoço para ver o que vai suceder e traduz bem as criaturas como pessoas. S. LÉGASSE, L’épître de Paul aux Romains, Paris, Cerf, 2002, p. 538, nota 24; D. MOO, The Epistle to the Romans, «The New International Commentary on the New Testament», Grand Rapids, Eerdmans, 1996, p. 513; J. A. FITZMYER, Lettera ai Romani. Commentario critico-teologico, Casale Monferrato, Piemme, 1999, p. 603-604.

[31] D. GAROTA, Tra caparra e compimento, in R. FABRIS, D. GAROTA, M. GUZZI, C. MILITELLO, M. TENACE, Salvati nella Speranza. Commento e guida alla lettura dell’Enciclica Spe Salvi di Benedetto XVI, Milão, Paoline, 2008, p. 142.

[32] D. GAROTA, Tra caparra e compimento, p. 142.

[33] D. GAROTA, Tra caparra e compimento, p. 142.

[34] «…Não falastes canonicamente (nekonah) de mim, como fez o meu    servo Job» (Jb 42,7).

[35] C. DI SANTE, L’Eucaristia terra di benedizione, p. 67-68; C. DI SANTE, Eucaristia. L’Amore estremo, p. 52-53.

[36] C. DI SANTE, Eucaristia. L’Amore estremo, p. 53-54.

[37] C. DI SANTE, Eucaristia. L’Amore estremo, p. 54.

[38] C. DI SANTE, Eucaristia. L’Amore estremo, p. 54-60.

 

 

 

 

 

PÃO PARTILHADO É PÃO ABENÇOADO!

 

Pão partilhado é pão abençoado!

Homilia na Solenidade do Corpo de Deus

1. Experiência humana

Sem dúvida que, de entre as diversas mercearias da nossa cozinha, o alimento mais popular entre nós é o pão. Um alimento descoberto há 6000 mil anos na Mesopotâmia e que, mais tarde, durante a civilização egípcia, começou a ser fermentado e consumido tal como nos dias de hoje. Daqui surgiram depois as primeiras padarias, criadas pelos hebreus na cidade de Jerusalém, e, com a chegada do Império Romano, este alimento difundiu-se por toda a Europa, graças à criação de escolas especializadas neste fabrico.

Contudo, só passados apenas 4000 anos de fabricação deste alimento, chegou alguém capaz de nos indicar o modo correcto de consumir este alimento, como escutávamos no evangelho de hoje. Ora, e se é verdade que a sabedoria popular nos ensina que “pão comido é pão esquecido”, Jesus, porém, opta por uma outra lógica: “pão partilhado é pão abençoado!” (isto é, aprovado por Deus).

2. Liturgia da Palavra/Reflexão Teológica

Neste sentido, o excerto da Primeira Carta aos Coríntios, que escutávamos na segunda leitura, apresenta-nos a narração mais antiga da instituição da eucaristia: o momento em que Jesus partilhou o pão e o vinho, pedindo aos seus discípulos que repetissem aquele gesto, fazendo assim o memorial da sua Paixão.

De facto, quando estamos reunidos à volta da mesma mesa (eucarística), partilhamos a mesma identidade e comemos sempre o mesmo pão, encontrando aí o fundamento da nossa unidade e vida fraterna. [1] E como foi belo este momento de unidade em que, simultaneamente em todo o mundo, fizemos uma adoração eucarística sincronizada com o Papa Francisco, contemplando Jesus, o verdadeiro Pão do Céu, porque acreditamos na sua presença real na hóstia consagrada.

Aliás, todas as nossas vidas encaixam nesta metáfora do pão, pois elas também são constantemente semeadas, regadas, crescidas, maturadas, ceifadas, amassadas e cozidas na trama do quotidiano. Mas se todas as vidas são pão, nem todas são eucaristia, ou seja: oferta radical de si aos outros, serviço e partilha. [2] E porquê? Porque “a eucaristia não se cinge ao mero acto celebrativo. E o gesto do lava-pés, evocado em Quinta-Feira Santa, revela o seu sentido missionário.” [3]

[A propósito, achei pertinente o belo testemunho da actual Ministra Assunção Cristas, que também esteve presente no nosso evento Átrio dos Gentios, e que, num recente programa televisivo, admitiu a necessidade de participar na eucaristia dominical para aí receber um pouco de tranquilidade e sentido na sua vida. [4] ]

3. Desafios Pastorais

O mundo espera dos cristãos esse fermento do amor, da partilha e da fé que marca a diferença em tantos ambientes hostis. Ao vivermos o Ano da Fé, não foi inadvertidamente que pedi a constituição de Grupos de Fé e a celebração paroquial ou interparoquial do Dia da Fé.

Trata-se de re-descobrir, em comum, o tesouro da fé e programar iniciativas, nunca de mera índole festivo, mas sempre suscitadoras de compromissos concretos, que matem a fome de alimento, justiça, liberdade, dignidade e paz de tanta gente.

Como nos adverte o cartaz do Ano Pastoral, espalhado pelas igrejas da Arquidiocese, entrar na Porta da Fé é, paradoxalmente, sair para o mundo, não para o condenar, mas para o purificar!

Para terminar, gostaria de partilhar um texto daquele que foi um autêntico mártir da Eucaristia, Bispo D. Oscar Romero: “Como é bonita a missa, sobretudo quando é celebrada numa catedral cheia como a nossa, aos domingos! Ou quando é celebrada humildemente nas capelas das povoações com pessoas cheias de fé, que sabem que Cristo, o rei da Glória, o sacerdote eterno, acolhe tudo o que Lhe trazemos da semana: penas, fracassos, esperanças, projectos, alegrias, tristezas e dores. Irmãos, quantas coisas cada um de vós leva para a sua missa dominical! O eterno Sacerdote acolhe-as nas suas mãos e, através do homem sacerdote que celebra, eleva-as ao Pai. É o fruto do trabalho de toda esta gente. Unida ao meu sacrifício presente neste altar, essa gente torna-se divina. Quando sai da Catedral continua a trabalhar, a lutar, a sofrer, mas sempre unida ao eterno Sacerdote que permanece presente na Eucaristia para que O saibam encontrar no próximo domingo.” [5]

Com base neste belo testemunho eucarístico, há aqui uma grande lição a reter: que, na eucaristia, também coloquemos sobre o altar o pão da nossa vida, tantas vezes cicatrizado pelas feridas da nossa pouca fé, para ser de novo amassado e revitalizado pelas mãos de Deus! E, uma vez alimentados pela sagrada comunhão, ficamos fortalecidos para contagiar o mundo com o fermento do amor, através do exercício da caridade.

Por isso, peço-vos apenas que não vos esqueçais deste slogan: “pão partilhado é, sem dúvida, um pão abençoado!”

+ Jorge Ortiga, A.P.

2 de Junho de 2013, Sé Catedral de Braga.

 

 


[1] Cf. Igreja Viva (Suplemento do Jornal «Diário do Minho», 30 de Maio de 2013), A Igreja alimenta-se da Palavra – Solenidade do Corpo de Deus, 6.

[2] Cf. José Tolentino Mendonça, Pai-Nosso que estais na Terra, 106-107.

[3] D. Jorge Ortiga, A ortopraxis eucarística. Homilia na Solenidade do Corpo de Deus – 2012.

[4] Cf. Programa “Alta Definição” (SIC), 2 de Março de 2013.

[5] Oscar Romero, A doce violência do amor, 44-45.

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